46º FBCB – Maratona de debates sobre o terceiro dia das mostras competitivas

Equipes de três longas e três curtas se revezaram na mesa do Salão Caxambu do Kubitscheck Plaza Hotel no quarto dia de debates do 46º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO. Sob mediação da jornalista Maria do Rosário Caetano, estiveram presentes os realizadores dos filmes exibidos na noite de sexta-feira, 20, no Cine Brasília – curta documentário Carga Viva, longa documentário Hereros Angola, curta de animação Faroeste – um autêntico western, curta de ficção Au Revoir e longa de ficção Avanti Popolo – além do Rosemberg Cariry, atores e técnicos do longa Os Pobres Diabos, exibido excepcionalmente também na sexta.

Carga Viva apresenta a vida de uma família que cria os jumentos (numa localidade situada a cerca de 40 km da capital mineira) usados para passeios pelo Parque Municipal de Belo Horizonte. Contendo poucos diálogos, o filme procura, nas palavras da diretora Débora de Oliveira, “fazer a junção dos dois espaços: o campo e a cidade grande”. Para o fotógrafo do curta, Lucas Barbi, o plano final, com uma vista aérea do parque, localizado no hipercentro de BH, sintetiza a intenção do filme: “É a natureza dentro da cidade grande. É esse o trabalho desta família. Com os jumentos, eles aproximam a roça de crianças que nunca tiveram contato com estes animais”. Segundo Lucas, “o Parque Municipal de BH é um pequeno espaço de resistência dentro da cidade”.

Ao registrar o cotidiano dos povos Hereros, em Angola, África, o filme Hereros Angola, de Sérgio Guerra, surpreendeu com imagens fortes e cruas. São ritos de passagem, usos e práticas dos povos Hereros (como circuncisão, corte de dentes, abate de animais) que levaram algumas pessoas da platéia a deixarem a sala de exibição. “Nós procuramos não interferir no cotidiano deles. A gente esperava dias, se deslocava muito para conseguir registrar tudo”, revelou o roteirista e montador Marcelo Luna. “Usávamos um telefone via satélite para sabermos quando os rituais iriam acontecer. Foi assim que tivemos acesso a tanta coisa. O parto, por exemplo, nós conseguimos captar depois de acompanharmos a gravidez e de ficarmos dias na aldeia especialmente para isso”.

As filmagens de Hereros Angola foram sempre intermediadas por um tradutor, que acompanhou inclusive o processo na ilha de edição. “O filme traz muito a inteligência deles. O Martins, nosso tradutor, é um exemplo disso. Ele fala três línguas fluentemente”, conta Marcelo Luna. “Na verdade, quase todos em Angola falam três idiomas, mesmo sem terem passado por uma educação formal”.

A ideia de filmar as etnias Hereros partiu do diretor Sérgio Guerra, que não pôde estar presente ao Festival. Seu filho, João Guerra, um dos produtores executivos do filme, revela: “Meu pai tem uma enorme paixão por Angola. Ele mora há mais de 15 anos entre o Brasil e Angola. Numa das viagens que fez pelo país, tomou contato com os povos Hereros e viu que não havia quase nenhum registro sobre eles”.

As imagens foram captadas em 2009 e só uma parte delas foi usada no corte final do longa Hereros Angola. “Eu tenho mais de mil arquivos de cantos, toques e tambores”, avisa Bira Marques, autor da trilha sonora e da música original. Marcelo Luna complementa: “Nós recebemos quase 400 horas de material bruto. Muitos momentos não estão no filme, como os rituais de feitiçaria e os julgamentos, que são extremamente refinados”.

Violência e solidão

Os faroestes de Sérgio Leone, os filmes de Quentin Tarantino e Akira Kurosawa e as animações do japonês Hayao Miyazaki são as inspirações confessas do goiano Wesley Rodrigues, diretor do curta de animação Faroeste – um autêntico western. “Quando penso numa animação, gosto de misturar tudo”, disse o ilustrador e animador. O filme trata a questão da violência social de forma leve, transferindo a ação para um deserto, que lembra os ambientes das animações de Chuck Jones para os filmes do Papa Léguas (que Wesley também cita como referência), mas inclui elementos da cultura popular brasileira. “Lembrei de algumas cidades do interior de Goiás, que têm este clima desértico e tentei colocar isso no filme”, revelou.

Wesley Rodrigues é um trabalhador incansável. Além de animação que assina no Festival, com mais de 18 min, prepara o lançamento de uma Graphic Novel de 460 páginas, intitulada Imaginário Coletivo, e trabalha num longa de animação em Porto Alegre. “Fiz o Faroeste nos meus momentos vagos”, disse, arrancando risos da platéia.

Quem assistiu ao curta de ficção Au Revoir, poderia apostar que a ação transcorre na capital francesa. Mas a diretora Milena Times surpreendeu a todos ao revelar que nada foi filmado fora do Recife. “Em nenhum momento eu falo que estou em Paris”, disse a diretora, divertida. “A gente tinha como referência cidades menores da França, mas procuramos trabalhar com liberdade para criar as referências europeias, uma atmosfera européia”, contou. Segundo a atriz Rita Carelli, protagonista do filme, “o grande trabalho foi no registro da contenção, porque minha formação é de palhaça”, brincou. “Meu objetivo principal no filme foi ser fiel à sensibilidade de Milena, corporificar os desejos dela”.

“Um filme sobre a morte, a ferida, a solidão, o esquecimento, a desesperança”. Assim o diretor Michael Wahrmann definiu seu Avanti Popolo, que tem o diretor Carlos Reichenbach (falecido em 2012) como um dos protagonistas, ao lado de André Gatti, professor de cinema da FAAP. Para Michael, que é judeu-uruguaio radicado no Brasil, “quando havia utopias havia alguma esperança”. Segundo Wahrmann, o filme tenta levantar algumas questões ligadas ao cinema: “Hoje, eu não sei o que fazer com o cinema, o que fazer com os filmes, por que fazer cinema”, questiona. “É uma atividade que era difícil na época do Carlão (Reichenbach) e continua sendo até hoje. As lutas que o Carlão teve durante sua vida toda são as mesmas que estamos tendo hoje. Fizemos um longa com orçamento de curta”.

Avanti Popolo é protagonizado por não-atores e utiliza material de arquivo produzido por Marcos Bertoni ainda nas décadas de 70 e 80. O próprio Bertoni explicou o que ele chama de Movimento Dogma 2002: “Fazer filmes a custo zero”. Segundo relatou, a ideia nasceu num dia de chuva e frio em São Paulo: “Eu achei umas sobras de filmes de 20, 30 anos atrás e comecei a emendar. Dublei os personagens e fiz o que hoje eu chamo de Cinema da Reciclagem ou cinema solitário. Dizem que os filmes velhos são transformados em vassouras. Mas o Micha deu uma utilização melhor para os meus”.

Para Michael, cuja primeira formação foi em artes plásticas, o filme também é sobre obsessivos. “Cada pessoa do filme tem uma substituição clara de algum problema”, disse. O diretor também explicou a escolha do professor André Gatti para protagonizar o longa: “Queria que ele fizesse o personagem melancólico e amargo como ele mesmo é”. Dono de um humor particular, André Gatti arrancou risos da plateia ao revelar: “Micha não foi um dos meus alunos mais assíduos por assim dizer, mas tem uma intuição monstruosa! Algumas coisas do filme para mim são Limite (de Mário Peixoto). Ele é um animal cinematográfico”.

Sob as bênçãos dos artistas populares

Foi reconhecendo-se um artista barroco que o diretor cearense Rosemberg Cariry iniciou sua participação no debate da manhã de sábado, sobre seu mais recente filme Os Pobres Diabos, cuja exibição na primeira noite da Mostra Competitiva de Longas de Ficção foi interrompida devido a problemas técnicos. Reexibido na noite de sexta-feira, o filme mostra uma trupe de um circo mambembe que percorre o interior do país. “O que nos singulariza na América Latina é o barroco, que se transforma na alma e no coração do povo. O que seria de nós sem Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Padre Antonio Vieira, Jorge Amado, o Tropicalismo? Tudo isso é barroco. Eu sou barroco, nasci vendo cantorias, lendo Guimarães Rosa. Este filme mostra o encontro disso tudo com a juventude atual, que está em transe. O resultado só pode ser muito legal”, disse, referindo-se à parceria com o filho, Petrus Cariry, fotógrafo do filme.

Segundo relatou Rosemberg, Os Pobres Diabos foi construído muito a partir do contato dos atores e atrizes – bastante experientes – com os artistas de circo que integraram o elenco. O ator Chico Diaz, um dos protagonistas do título e que comemora seu terceiro filme sob a direção de Rosemberg, concorda: “O risco é fundador do circo e também faz parte do exercício do ator. Sei que é preciso estar disponível com meu corpo para o dia-a-dia. A escola pra nós foi a convivência com o pessoal do circo”. O ator Everaldo Pontes vai além: “O encontro entre nós, atores, com o pessoal do circo levou a novas situações, de improviso mesmo. Nos sets do Rosemberg acontecem fenômenos muito interessantes. Ele ainda pergunta ao ator o que ele acha disso ou daquilo. É de uma estirpe de diretor que está em extinção e que dá espaço de liberdade aos atores”.

A relação entre atores e artistas circenses marcou até mesmo o tom do filme, segundo testemunhou a atriz Sílvia Buarque: “O roteiro inicialmente não tinha nada de engraçado, mas o Rosemberg foi se encantando pelo universo do circo, pelo mosaico que tudo isso gerou e o filme traz este tom também”. Sílvia também comentou o convite do diretor para que ela desse vida à sedutora Creusa: “Foi muito difícil fazer a Creusa. Quando o Rosemberg me convidou, eu disse sim imediatamente, mas quando fui ler o roteiro, pensei: esse cara só pode ser maluco! Porque a personagem é muito diferente de mim. Acho que poucos diretores pensariam em mim para viver esta personagem. Mas aceitei o desafio e foi um grande exercício de auto-estima, porque a Creusa se acha maravilhosa”, disse, sorrindo. E concluiu: “Com ela, eu trafeguei por lugares que eu nunca tinha transitado antes”.

Apesar de percorrer o universo do circo e ter Chico Diaz dando vida a um palhaço, o filme Os Pobres Diabos não pode ser catalogado como uma comédia. “Tivemos a preocupação de não fazer comédia, mas manter o clima de humor no filme. Não o humor rasgado. Eu diria que o filme é uma tragicomédia”.

E o diretor concluiu o debate com um grande alerta sobre o momento presente do cinema brasileiro: “Vivemos um momento de extrema gravidade. Temos 150 filmes produzidos por ano e só 25 ou 30 são lançados, muitas vezes de forma precária e alcançando pouco público. Os cinemas agora estão situados em shopping centers e são freqüentados apenas pela classe média alta. Então, eu vejo produtores que tentam se adaptar ao gosto desta classe. O resultado é que temos todos os recursos de financiamento para um público de 2% que assiste ao cinema brasileiro. Alguma coisa tem que ser feita. Mais de 90% dos cineastas são exilados em seu próprio país. Cinema não pode ser só dinheiro. Um filme carrega consigo imenso capital simbólico. O que rendeu o filme O Pagador de Promessas em termos financeiros? E o que ele representou para o cinema nacional? Temos que pensar em que mercado é esse do cinema brasileiro?”

A 46ª edição do FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO tem coordenação geral de Sérgio Fidalgo, coordenador de Audiovisual da Secretaria de Estado de Cultura do GDF. O Patrocínio é da Petrobras, BNDES, Terracap e BRB. Apoio da Lei de Incentivo à Cultura, Inframérica (Aeroporto de Brasília), Câmara Legislativa do Distrito Federal, Canal Brasil, TV Brasil, Revista de Cinema. Realização: Instituto Alvorada Brasil, Secretaria de Cultura, Governo do Distrito Federal e Ministério da Cultura.