46º FBCB – História e contemporaneidade dão tom ao debate dos filmes exibidos no domingo
Os filmes projetados na noite de domingo, 22, nas mostras competitivas do 46º FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO geraram tantas questões que o espaço de tempo do debate se revelou pequeno. Sob mediação da jornalista Maria do Rosário Caetano, foram analisados, num primeiro momento, os competidores no formato de documentário. Sentaram-se à mesa os diretores Rafael Urban e Terence Keller, de A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês?, acompanhados da montadora do filme, Larrisa Figueiredo, e a equipe do longa Plano B, com o diretor Getsemane Silva, o co-diretor e roteirista Santiago Dellape, e os atores Jean-Claude Bernardet e Joel Barcellos. A segunda parte do debate se dedicou aos filmes de ficção, a animação Ed., de Gabriel Garcia, o curta Fernando que ganhou um pássaro do mar, de Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr, e o longa Riocorrente, de Paulo Sacramento, que compareceu acompanhado dos atores, Simone Iliescu e Roberto Áudio, e do diretor de arte, Akira Goto.
A que deve a honra da ilustre visita este simples marquês? é filme que apresenta um personagem surpreendente, colecionador inveterado de objetos e histórias. Max Conradt Jr. é um senhor de 81 anos de idade que coleciona quadros, revistas, livros, conduz a narrativa e recheia seus depoimentos de frases pomposas. “Todas as vezes em que a gente chegava lá, ele nos recebia com uma reverência. Fazia um grande teatro e repetia as frases, sempre de maneira diferente do dia anterior. Por isso, a gente podia ter vários títulos para o filme”, contou o diretor Rafael Urban. Segundo ele, que é autor também de Ovos de Dinossauro, outro filme sobre personagem singular, a intenção é promover também uma discussão sobre a identidade do seu estado: “O Paraná é um lugar que não lida muito com sua própria memória”, diz. Terence Keller, o outro diretor do curta, acrescenta: “O Paraná busca uma identidade até hoje”.
De acordo com Keller, a ligação com Max Conradt Jr. teve início no ano de 2007, ao término do festival Recine-Paraná. Ele conta: “De repente eu vi aquele senhor que carregava dezenas de cartazes de filmes da década de 1960 e fui conversar. Ele me contou que tinha outras dezenas de cartazes como aqueles em casa. A partir daí, fizemos vários visitas e vimos que ali havia o tema para um filme”. Segundo Urban, Conradt Jr. é apaixonado por cinema e encontrou uma forma peculiar de se aproximar da linguagem: “Ele era dono de uma loja de roupas para crianças, chamada Maison Blanche. Comprou o Cine Curitiba pra fazer lá dentro a loja e disse que estava realizando desta forma o sonho de estar no mundo do cinema”.
Max Conradt Jr. é um contador de histórias impagável. “A coisa mais forte nesse homem é a energia inesgotável. Uma vez, passamos um dia inteiro procurando, com ele, a Playboy número 1, que ele tinha guardado. E ele tirava e abria 150 caixas. Isso para um homem de 81 anos de idade é impressionante”, relatou Rafael Urban, contando que semanalmente o personagem muda os quadros de lugar, a posição dos livros e cataloga tudo numa máquina de escrever. A certa altura, contam os diretores, o personagem tomou o filme para ele. “Ele não respeitava os nossos limites. Pedíamos um plano de 5 minutos e ele fazia com 10. A gente teve que contornar a eloqüência dele”, revelou Terence Keller.
Coube à montadora Larissa Figueiredo lidar com todo o material filmado ao longo de 25 entrevistas. E ela avisa que o filme ficou bem diferente do roteiro original. “Quando os meninos chegaram com o material bruto, eles estavam injuriados com Max, porque ele tinha pegado o filme pra ele. Mas eu fui vendo o material bruto e me apaixonando pelo personagem. A primeira versão ficou com 60 minutos”, afirmou. Rafael Urban avisa que ainda espera poder exibir esta versão original. “O Max tem uma capacidade tão incrível de articular, que tudo parecia ensaiado. Era como se déssemos a ele um palco para fazer sua performance. É um personagem incrível. Entre o homem e o cinema, optamos pelo homem e esperamos poder um dia mostrar esta pessoa na versão de 60 minutos. Sentimos que, pra ele, este é uma espécie de filme-testamento”.
Produção que busca as pistas de Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, filme rodado em 1967, pelo diretor Joaquim Pedro de Andrade, mostrando as discrepâncias sociais da recém-criada capital brasileira, Plano B, marca a estreia de Getsemane Silva na linguagem do longa-metragem. O filme reúne parte da equipe do filme original, como o roteirista Jean-Claude Bernardet, o ator Joel Barcellos, que atuava como entrevistador, e o fotógrafo Affonso Beato, e dá a eles uma nova função, a de atores da nova produção. “É um filme híbrido, mistura muitas escolas do documentário e também a ficção. Tudo é encenação e busca. É um liquidificador que aceita narrativas e performances. Não tem limite”, avisou o diretor Getsemane Silva.
Brasília, Contradições de uma Cidade Nova foi rodado sob encomenda para a marca Olivetti. Mas Joaquim Pedro e Jean-Claude Bernardet não fizeram um filme-propaganda da nova cidade. Ao contrário: iluminaram as contradições sociais que levaram aqueles que trabalharam na construção dos prédios do Plano Piloto a só encontrarem moradia muito distante do centro da capital. Foi exibido uma única vez na época, no Festival de Brasília, depois interditado e caiu no ostracismo. Contam que o próprio Oscar Niemeyer não quis defender o filme sobre a cidade que ajudava a criar, como explicou Jean-Claude Bernardet: “Ele se colocou contra o filme sim. O Joaquim Pedro de Andrade foi procurá-lo quando soube que iriam interditar o filme, mas Niemeyer se recusou. Em 1975, quando voltou a encontrar Joaquim, disse assim: – Vocês tinham razão”, relata Bernardet. Segundo o cineasta e grande teórico do cinema brasileiro, durante as pesquisas Get encontrou um artigo escrito por Niemeyer no dia seguinte à exibição do longa no Festival de Brasília, exaltando o filme. “Na época, a gente não tomou conhecimento disso”, contou Bernardet, agora ator.
Getsemane Silva avisou que pretende conseguir exibir Plano B nas escolas do Plano Piloto, já que o filme contrapõe imagens de hoje e as cenas colhidas mais de 40 anos atrás. “Acredito que se não tivesse havido uma ditadura militar e o filme tivesse sido exibido nas escolas, teria mudado a realidade da cidade. Isso eu vou tentar fazer com o meu”.
Alegorias e realidade
A segunda mesa do debate reuniu o roteirista Leo Garcia e o produtor Guilherme Piccinini, da animação Ed., Helvécio Marins, um dos diretores do curta Fernando que ganhou um pássaro do mar, e Paulo Sacramento, os atores, Simone Iliescu e Roberto Áudio, e o diretor de arte, Akira Goto, do longa Riocorrente.
Ed. é animação que bebe de gêneros do cinema norte-americano. “Quando escrevemos o roteiro, até pensamos em incluir uma referência a Deus e o Diabo, mas a gente não queria que o espectador pensasse que estávamos falando de filmes. Queríamos que o público achasse que era um flash back da vida do Ed.”, conta Leo Garcia. Segundo informou, o filme já foi para 40 festivais e saiu premiado em alguns deles, como o festival da Bósnia, Harlem Film Festival, Portugal, dentre outros. “Mas ainda estamos engatinhando na parte comercial do filme”, avisa o produtor Guilherme Piccinini.
A animação levou três anos para ficar pronta e consumiu pouco mais de R$ 100 mil – R$ 80 via Ministério da Cultura e R$ 20 mil através do Crowdfunding, de financiamento coletivo. “É muito pouco para uma animação dessa complexidade”, diz Leo Garcia. Segundo ele, antes de fazer a animação, foram feitas gravações do movimento e das expressões de atores, para alcançar veracidade. E revelou, provocando risos na platéia; “A gente só se arrependeu de ter escolhido um coelho pra protagonizar o filme, porque fazer os pelos do coelho deu um trabalho enorme. Se fosse outro animal, teríamos economizado um ano de trabalho”.
Confessadamente inspirado nos cinemas de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, Fernando que ganhou um pássaro do mar é a primeira parceria dos diretores Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr. O filme mostra de forma alegórica a imagem de paraíso que o Brasil ainda tem para alguns portugueses, para depois lançar o público na realidade da exclusão social. A ideia surgiu depois que Helvécio foi convidado a fazer um curta sobre o festival Curtas Vila do Conde, em Portugal. “Eles me deram oito dias pra filmar. Na época, me concentrei na figura do Rocha, que aparece neste filme, conversando com o Fernando, numa mesa. Mas eu fiquei interessado também no Fernando e como sou rápido, passei quatro dias filmando também o Fernando. Quando voltei, resolvi fazer alguma coisa com aquele material”, conta o diretor.
Segundo revelou Helvécio Marins Jr., a intenção primeira era falar da imagem do Brasil em Portugal: “Andando por lá, a gente percebeu um romantismo enorme. Algumas pessoas ainda têm aquela imagem antiga de paraíso; outras acham que o Brasil está rico, vivendo um momento esplêndido. Então, tivemos a ideia de colocar o índio que era o líder da ocupação da Aldeia Maracanã para falar da realidade hoje. Mas o filme é um delírio mesmo. Filmamos tudo de forma bem caótica”.
Um filme sobre a cidade de São Paulo com todas as suas complexidades, Riocorrente, marca a estreia de Paulo Sacramento na direção de longa-metragem de ficção. Mas o diretor não deixou de lado o olhar para a realidade: seu filme usa guias narrativas para dar vazão à realidade. “Sempre dizem que um dos defeitos do cinema brasileiro é que os diretores levam tanto tempo pra fazer um filme que depois tentam colocar tudo dentro dele. Eu não fujo à regra”, alertou. Paulo Sacramento também relatou os diversos processos pelos quais o roteiro original passou até que pudesse, em suas palavras, “respirar”. “Eu queria trazer o cheiro, a textura da cidade. Transformar a cidade numa personagem tão forte quanto é no filme. Queria que as coisas criassem atritos. As arestas são muito importantes nesse filme”, explicou.
O diretor avalia seu filme como “rápido, pesado e urgente” e diz esperar do espectador uma postura diante ele. “Não existe uma pessoa de São Paulo que não tenha uma relação de amor e ódio com a cidade”, afirmou, citando letra da música de Criolo: “Não existe amor em SP”. Mas, diz Sacramento, por outro lado existe a afetividade: “Há a busca pelo afeto. Procurei criar a ficção dentro do concreto”. Para alcançar este dado, o diretor diz ter contado com a ajuda dos atores. “Eles me alimentaram, me deram conforto. São atores maravilhosos, que acompanho há muito tempo, dentro do Vertigem, com o Antunes (Filho). Reescrevemos todos os diálogos a partir dos ensaios que são, 90% deles, de confronto. Eles me protegiam no set e possibilitaram o meu vôo”.
De acordo com Sacramento, os personagens foram criados a partir de arquétipos – a força, a inteligência, a cultura. Simone Iliescu, uma das protagonistas, ao lado de Roberto Audio e Lee Taylor, disse que o filme dialoga com o que ela mesma quer dizer: “Eu descobri que a personagem é a própria cidade de São Paulo talvez”, disse. E completou: “Ela entra para provocar os dois personagens, quer uma transformação nela e neles. Não sabe exatamente o que quer transformar, mas tem uma grande inquietação. Eu me concentrei no sentimento”.
Roberto Audio, que integra o grupo Teatro da Vertigem, cuja carreira é caracterizada pela ocupação de espaços urbanos não convencionais, viu no filme a chance de participar de um discurso que reflete uma preocupação com a cidade que ele conhece há muito tempo. Disse: “Os personagens estão sendo impregnados pela cidade, que estão em coma, em tratamento e nunca se cura”.
A 46ª edição do FESTIVAL DE BRASÍLIA DO CINEMA BRASILEIRO tem coordenação geral de Sérgio Fidalgo, coordenador de Audiovisual da Secretaria de Estado de Cultura do GDF. O Patrocínio é da Petrobras, BNDES, Terracap e BRB. Apoio da Lei de Incentivo à Cultura, Inframérica (Aeroporto de Brasília), Câmara Legislativa do Distrito Federal, Canal Brasil, TV Brasil, Revista de Cinema. Realização: Instituto Alvorada Brasil, Secretaria de Cultura, Governo do Distrito Federal e Ministério da Cultura.
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