Elegia do futuro

Texto de Sérgio Moriconi

Apresentado na competição do último festival de Cannes, La Chimera, da diretora italiana Alice Rohrwacher, saiu consagrado ao receber nada menos que quinze minutos de aplauso ao fim de sua exibição. Quinze minutos!, nada mal para um filme que pode ser tudo menos um entretenimento leve e otimista. É, isto sim, o avesso disso. É uma fábula pessimista sobre a derrocada, sobre o aniquilamento moral, social e econômico do capitalismo. Esta é também a visão, entre o melancólico e o lírico, de Rohrwacher nos seus dois longas-metragens anteriores, As Maravilhas (2014), Lázaro Feliz (2018) e ainda no magnífico curta-metragem Omelia Contadina (Omelia Camponesa/2019), realizado em parceria com o artista francês JR, o mesmo que colaborou com Agnès Varda em Visages, Villages. Em Omelia, Rohrwacher apresenta um grupo de camponeses do norte da Itália declamando – numa “cantata seca” – textos proféticos de Pier Paolo Pasolini e Rachel Carson, retirados do clássico da literatura, Primavera Silenciosa.

Omelia Contadina narra uma cerimônia fúnebre cujo defunto é a cultura milenar dos agricultores (ou camponeses, como queiram). O tema do genocídio promovido pelo laissez-faire, pelo liberalismo sem regras, é recorrente para a diretora toscana, assim como também o é a reificação e mediocrização das mentalidades, muito explícito em ambos os longas anteriores, e também neste último. Não deixa de ser sintomático o uso de textos de Pasolini, uma das grandes influências de Rohrwacher assim como Federico Fellini. La Chimera faz duas claras referências ao diretor de Amarcord, uma delas é quando um helicóptero transporta suspensa em cabos uma estátua etrusca, uma alusão ao início de A Doce Vida em que vemos um santo ocupando o lugar da estátua etrusca. A segunda referência se dá no momento em que os profanares de túmulos violam uma cripta e o impacto do ar faz desaparecer as pinturas dos murais. Identica cena se dá em Roma de Fellini.

Mas afinal, sobre o que trata La Chimera? A história se inicia no momento em que um jovem arqueólogo inglês Arthur (Josh O’Connor), depois de um período na prisão, volta à cidade onde vivia e se junta novamente a um bando de ladrões saqueadores de túmulos. Seria uma fantasia de filme de terror? Poderia ser, mas não é. Muito pelo contrário. À parte a imaginação de Rohrwacher, tudo que vemos existiu e existe de fato. Na Toscana natal da diretora esses túmulos etruscos repletos de objetos de grande valor estão por toda parte. Ela filmou justamente no que havia sido o coração da Etrúria, os bairros de Tuscia, a partir da cidade de Tarquínia, também na cidade de Civitavecchia, na praia de Frasca e na Torre Valdaliga Nord, sob uma imensa usina, cenário de uma das mais incríveis seqüências do filme. Aos pés da usina se encontra – pelo menos no filme – uma gigantesca necrópole etrusca. As filmagens foram todas feitas por ali mesmo, nos municípios da província de Viterbo, incluindo a pequena localidade de Blera, surgida entre os séculos VIII e VII a.C., época em que surgiram algumas das mais famosas necrópoles etruscas.

Os etruscos antecederam e foram contemporâneos de Roma. Historiadores romanos se esforçaram durante décadas a apagar a enorme contribuição etrusca na construção do império romano. As necrópoles (ou cemitérios) ajudaram a reconstituir parte da história. E tudo começou por volta de 1928 perto de uma pequena aldeia da toscana: um trabalhador agrícola lavrava sua terra numa carreta puxada por bois que avançavam “com passo lento e regular. Repentinamente, no meio de um sulcro, os bois caem em um buraco profundo levando consigo o lavrador”. A citação se encontra em A Civilização dos Etruscos, de Philippe Azis. Muito bem, quando desperta, o trabalhador descobre com assombro que o acidente se deveu a uma profunda cova que dava lugar a uma velha sepultura repleta de vasos, cerâmicas, e peças de metal. Ele sai com algumas dessas peças e mostra para o seu senhor, o príncipe de Canino, Lucien Bonaparte, irmão mais novo do imperador Napoleão Bonaparte. Intrigado, Lucien se interessa pelo assunto e pede que se iniciem pesquisas no próprio local.

A esta primeira descoberta seguiu-se uma enorme abundância de documentos e de outras descobertas, como as magníficas necrópoles de Volterra, certamente destinadas à elite aristocrática da cidade. A exuberância delas impressionou o poeta Gabriele D’Annunzio que escreve A Cidade Morta onde presume que os etruscos acreditavam num além, pensavam que a morte não é o fim definitivo da vida, mas uma outra forma de vida. Os etruscos eram místicos e esotéricos, sábios e adivinhos, um pouco como o Arthur, de La Chimera, aquele que adivinha onde cavar para encontrar os túmulos. Teria Rohrwacher pensado na personagem como um revenant de civilizações extintas? Arthur é um sensitivo. É o único dentre os delinqüentes que roubam túmulos a se interessar de fato pela arqueologia. Um romântico melancólico que devaneia a presença de Beniamina, sua namorada morta, filha de Flora (Isabella Rossellini). Flora acredita que Beniamina está viva e vai voltar.

Flora vive cercada das quatro filhas num casarão decrépito que ainda tem Itália como serva (sim, é o nome da personagem vivida pela brasileira Carol Duarte), a despeito de argumentar que o abuso de seu trabalho quase escravo se dá em troca de aulas de canto! A casa arruinada alude à mansão em ruínas da marquesa Algonsina de Luna, a rainha dos cigarros, de Lázaro Feliz. A “empregada” de nome “Itália” não deixa de ser uma alegoria do país de Rohrwacher. Flora acredita que existe uma porta que se abre para o além. A dimensão sensitiva mística dela é o que faz Arthur se aproximar. A perda da perspectiva do sagrado é uma das preocupações da diretora. La Chimera, e o título já diz muito, tem por isso mesmo um aspecto de fábula, de utopia, uma utopia um tanto quanto lúgubre, onde as personagem manifestam, ao mesmo tempo, o desejo de fuga e de reconciliação. Lembramos toda a seqüência da chegada da troupe televisiva à casa da família que produz mel em As Maravilhas. Tudo muito felliniano, na fronteira do onírico, do nonsense, do fantástico, do farsesco.

Como nos lembra Gian Piero Brunetta (Cine Italiano – Una Storia Grande 1905-2023), “Rohrwacher dá prosseguimento à inquietação da geração anterior a sua, assim como a de muitos (as) de seus (suas) contemporâneos (eas), em relação à família”. Realizadores díspares como “Sergio Rubini, Fersan Özpetk,…Suzanna Nicchiarelli, ignoram a comédia superficial, para buscar um enfoque mais profundo sobre a “irreversível desagregação” da família. Os termos entre aspas são de Brunetta. No caso de Rohrwacher o enfoque familiar vem matizado por uma crítica social anti-capitalista não ortodoxa, original, repleta de elementos cabalísticos, antropológicos, imprevisíveis, etéreos, que quase nos escapam por entre os dedos das mãos. Mas há ironia, um riso amargo. Lembramos especialmente das seqüências com sua onipresente irmã, Alba Rohrwacher, no papel de Spartaco (notem bem o nome), uma inescrupulosa e rica comerciante dos objetos pilhados nos túmulos. Spartaco nos faz lembrar do ”efeito Orloff”, lembram daquela propaganda de vodka dos anos 1990, “eu sou você amanhã”? Na transmutação proposta por Rohrwacher, nosso mundo disfuncional e em decomposição nos faz supor que seremos os etruscos de amanhã. Uma civilização extinta. Mas em nossas necrópoles pode ser que não achem nada de valor – leiam, por favor, como metáfora.