Cinema e/ou filosofia, eis a questão!

O húngaro Béla Tarr tem pela primeira vez em Brasília, no Cine Brasília, um filme seu lançado comercialmente

Sérgio Moriconi

O cavalo de Turim, de 2009, é justamente a última obra de Béla Tarr e, de alguma maneira, sintetiza a essência cinematográfica e metafísica de sua arte. Filosofia, de fato, não pode ser deixada de lado quando se fala do seu cinema e mesmo de sua trajetória de vida. Ele não pensava em ser cineasta. Quem viu o documentário Um filme de cinema, de Walter Carvalho, pode ter uma ideia do pensamento desse filho de uma família de trabalhadores que na juventude recebe uma bolsa do governo húngaro para estudar filosofia, mas acaba se consagrando atrás das câmaras. A descoberta do cinema surgiu depois de algumas incipientes experiências em super-8 (tipo de película e filmadora amadora, muito comum nos anos 70 e 80 do século passado). Aos 59 anos, embora tenha uma filmografia pequena (apenas 10 longas), em comparação com vários outros cineastas da mesma geração, Tarr erigiu uma abra de rara, raríssima, densidade sob qualquer ponto de vista.

A escritora e ativista Susan Sontag apadrinha Tarr como “um dos salvadores do cinema moderno” e chega a dizer ser capaz de rever todos os anos O tango de Satanás, filme com mais de sete horas de duração, baseada numa novela do compatriota húngaro László Krasznahorkai. Sete horas! Não é nada fácil ver Tarr sem a necessária disponibilidade de espírito. O diretor se utiliza sempre de um fio de história tênue, acessório, se consideramos obras de dramaturgia convencional. O que conta mesmo é o fluxo contínuo das imagens, imagens parcimoniosas que – nos seus termos – permitem experimentar o curso de um tempo “fora do tempo”. Um tempo metafísico, abstrato, deslocado em planos-sequência longuíssimos que só não são chatos porque são sublimes. Tarr busca o intangível. Não à toa, O cavalo de Turim se inicia com uma citação de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche: “Esta vida, assim como tua vives a agora e como a viste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes, e não haverá nela nada de novo, cada cor e cada prazer e cada pensamento e cada suspiro e tudo, o que de indivisivelmente pequeno e grande em tua vida há de se retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência…”.

Para Tarr as coisas não evoluem, elas retornam, reafirmando arquétipos fundamentais dos seres humanos. O cavalo de Turim é um filme que um crítico descreveu como “um esgotamento (da natureza, incluindo a humana), um encolhimento (do espaço), um apagamento (da luz)”. Apesar dessa observação um tanto quanto esotérica, o público não deve desanimar já que poucas vezes se viu (ou vai se ver) tão esfuziante beleza numa tela de cinema. O documentário de Walter Carvalho reproduz o impressionante plano-sequência do homem que conduz em alta velocidade uma carroça puxada por dois cavalos. A câmara circunvolteia a carroça, o homem, os sôfregos esgares da face do indivíduo e dos animais, o vento, o frenezi da corrida, todo o conjunto dos detalhes nos induz, plasticamente, a compreender algo que só pode ser entendido pelos sentidos. Tempo e espaço estão diluídos na isolada província húngara onde a ação do filme se passa. A época é indeterminada, muito embora deduzimos algo como o final do século XIX, impressão reforçada por uma narração que alude a história do silêncio de Nietzsche e ao choque que teve ao testemunhar os maus tratos infligidos a um cavalo numa rua de Turim.

Existe algo de fantástico no cinema de Béla Tarr. As ações estendidas e suspendidas no tempo, por exemplo, causando-nos todo tipo de inquietude. A recorrência das cenas é um recurso fundamental em O cavalo de Turim. Elas vão e voltam, aludindo a rotina de uma época específica e, ao mesmo tempo, de todas as épocas. É mais ou menos como nas tragédias gregas onde os deuses não vivem num tempo específico. No cinema de Tarr as personagens estão (vivem) também num remoto aqui e acolá. A recorrente música de Mihaly contribui para essa impressão de uma imprecisa rotina além do tempo, exemplificada nas insistentes cenas de refeições sempre com as mesmas batatas cozidas com sal. Também as freqüentes idas da jovem ao poço situado a poucos metros à frente de sua casa. Foi o próprio Bela Tarr quem anunciou O cavalo de Turim como seu último filme. O filme pode ser considerado o ponto final (será?) de uma estética que ele passou a desenvolver em Danação (1988) e no já citado O tango de Satanás (1994). Do ponto de vista do conceito a obra de Tarr parece nos conduzir para tipo laico de “estoicismo bíblico”. O mundo descrito por Tarr é penoso e miserável como nas páginas do Julgamento Final e do Apocalipse narradas pelo apóstolo Pedro (ou Simeão). Vejam: “no final dos 1000 anos, Satanás será solto, derrotado, e então lançado no lago de fogo. Então, depois de um julgamento final por Deus, o fim do mundo ocorre”. Há várias passagens na Bíblia sobre esse evento. Todas elas aludem a um fim cataclísmico, quando as estrelas, planetas e galáxias serão consumidos “por algum tipo de explosão tremenda, possivelmente uma reação nuclear ou atômica que vai consumir e destruir toda a matéria como a conhecemos. Todos os elementos que compõem o universo serão derretidos no calor ardente. Então Deus irá criar um novo céu e uma nova terra”. O cinema niilista (e pessimista de Tarr) se detém sobre esse momento pré-apocalíptico. O gênero humano caminha em direção ao nada. Mas os seus filmes nos conduzem a uma quietude transcendente muito próxima à música do estoniano Arvo Pärt; e se o fim nos fará ver essas imagens e sons, devemos, resignadamente, nos consolar e agradecer.