A ficção real dos Dardenne

Sérgio Moriconi

Premiadíssimos em alguns dos mais prestigiosos festivais europeus, os irmãos Dardenne estabeleceram, a partir de filmes como Rosetta (1999) e A criança (2005) – ambos Palma de Ouro em Cannes – um novo paradigma para o que poderíamos chamar de um cinema contemporâneo humanista, moral e politicamente engajado. Esse aspecto humanista está devidamente enfatizado pela curadora Caru Alves ao dar a sua mostra o título Cinema Humanista – Irmãos Dardenne. Seria necessário desfiar aqui um verdadeiro rosário de citações a todas as premiações dos Dardenne, não só aos filmes propriamente ditos, como também aos atores, atrizes e técnicos colaboradores de suas obras. A mostra do CCBB contempla, além da filmografia completa dos realizadores (que inclui 18 títulos), filmes produzidos pelos dois irmãos. No dia 15 de fevereiro, haverá um debate com a curadora e os críticos Cid Nader e Marcelo Miranda.

Talvez não haja momento mais oportuno para se rever o conjunto de filmes de Cinema Humanista- Irmãos Dardenne do que este. Preocupada desde sempre com uma certa decadência moral européia, a obra dos Dardenne se torna obrigatória no momento em que o continente se vê face à gravíssima crise dos imigrantes estrangeiros. Racismo e chauvinismo, atitude segregacionista, discriminação são temas que fazem parte do repertório deles desde A promessa (1996), longa que primeiro, e mais seriamente, chamou a atenção da crítica especializada do mundo. (Re)ver esse filme hoje é no mínimo surpreendente. Lembramos: estamos em 1996 e o filme, como nos lembra o crítico Claude Beylie (em Une Histoire du Cinéma Français), no capítulo destinado aos filmes de expressão francesa, traz o dilema dostoieviskiano segundo o qual “cada um é culpado diante de todos e por todos”.

Culpado de que? – perguntaríamos. Em A promessa (foto), os Dardenne se debruçam sobre o universo dos imigrantes ilegais da Europa e a relação de hipocrisia e exploração que se estabelece com os cidadãos europeus, muitos dos quais obtém vantagens financeiras a partir da situação vulnerável dos outros. O impasse, ou a ética, contida em A promessa é também cristã e isso não se dá apenas tematicamente, mas também esteticamente: a austeridade da mise-em-scène e do jogo dos atores, a recusa aos floreios da dramaturgia clássica, entre outros babados. No filme, Roger (Olivier Gourmet) e seu filho de 14 anos, Igor (Jérémie Rénier), fazem parte de um grupo envolvido no traslado de imigrantes da África, Ásia e Europa do leste. Esses imigrantes são acomodados em lugares precários e sujeitos a trabalhos de remuneração muito aquém daquela recebida pelos trabalhadores europeus. São também vítimas de todo tipo de falcatrua, já que não dominam inteiramente o idioma local.

Sobre essa situação base, os Dardenne constroem um drama ético-moral (e cristão) de grande potência. Quando dizemos cristão, não quer dizer que eles (os Dardenne) são indivíduos religiosos e sim que os princípios emulados pelo filme (generosidade, justiça, amor ao próximo etc, que também dizem respeito ao pensamento laico de esquerda) estão lá, assim como outros muito caros às igrejas, especialmente a culpa e a redenção. Igor, por exemplo, vai se tornar a consciência crítica do drama após a morte de um dos imigrantes. Amidou cai de um andaime de construção quando tenta escapar dos fiscais do governo. Ao contrário do pai indiferente, Igor vai ser tomado por um sentimento de culpa e comprometimento. Promete (por isso o filme se chama A promessa) ao agonizante que vai tomar conta de sua esposa e filho. Em contradição com o pai e com a intolerância da comunidade de cidadãos ao seu redor, torna-se um protetor da viúva que acabara de chegar de Burkina Fasso, ao mesmo tempo em que desenvolve um profundo senso de responsabilidade em relação à questão da imigração.

Sem querer exagerar muito, os filmes posteriores de Dardenne deixam igualmente a suspeita de que tratam, direta ou indiretamente, de uma paradoxal decadência civilizatória européia. Ou pelo menos de um pessimismo generalizado em relação ao otimismo experimentado (não por todo mundo, evidentemente) nas quatro décadas que se seguiram ao segundo pós-guerra. Mais do que em relação aos filmes de Ken Loach, com quem os Dardenne têm uma evidente afinidade de visão de mundo (e até, de certo modo, estética), obras como Rosetta, O filho (2002), entre tantas outras, expressam um asfixiante mal estar existencial. No caso do primeiro aqui citado, vemos uma mãe alcoólatra e uma filha que se debate contra o mal estar circundante. Nesses dois filmes, da mesma maneira que no recente Dois dias , uma noite (2014), prevalecem o mesmo estilo que alguns definiram como “miserabilista”, câmara na mão, em longos planos seqüência no estilo documental do “cinema-direto”. A câmara acompanha nervosamente os personagens, como se fôssemos eles, interpostos entre eles, passando-nos a impressão de que vivemos um drama “verdadeiro” e não uma ficção. Os Dardenne começaram fazendo documentários e se existe algo que essa mostra do CCBB tem de mais extraordinário é nos possibilitar ver esses filmes iniciais jamais exibidos no Brasil e assim poder perceber de que forma eles contribuíram para construir e consolidar a arte deles.

 SERVIÇO

DATA: de 10 a 29 de fevereiro de 2016
LOCAL: Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília